BRASIL: Com mais de 50 obras no Brasil e no exterior, Darlan Rosa se considera um artista plástico bem-sucedido, com uma carreira que vai da escultura em cimento à arte digital com inteligência artificial. Seu trabalho de maior sucesso e reconhecimento, porém, tem um traço simples e fácil de ser copiado: o Zé Gotinha, ícone do Programa Nacional de Imunizações (PNI), que completa 50 anos no próximo dia 18 de setembro e será celebrado por uma série de reportagens ao longo deste mês.
Mineiro da cidade de Coromandel, Darlan, de 76 anos, conta que a simplicidade foi proposital. Era importante que qualquer um pudesse desenhar o personagem, em uma época em que não era tão fácil produzir uma cópia de um panfleto ou cartaz.
“As agências de publicidade debochavam que era um personagem que não tinha mãozinha, que não tinha pé. E, naquela época, havia uma predominância de uma estética Disney, com personagens gordinhos, com a mão com luva, toda uma filosofia que, no meu entender, não se encaixava em um personagem para a saúde pública”, lembra o desenhista, em entrevista.
Darlan começou a desenhar na infância, quando também praticava com materiais como pigmento em pó e cimento da fábrica de ladrilhos de seu pai. A contaminação por esses produtos desde a infância fez com que, na meia-idade, uma alergia intensa causasse uma paralisia em um dos olhos e o obrigasse a abandonar as tintas. O artista, então, abraçou o mundo digital e hoje desenvolve trabalhos com computação gráfica e inteligência artificial.
“Marcou minha vida”
A insistência em continuar a produzir também marcou os primeiros passos do Zé Gotinha. Darlan Rosa conta que precisou ser insistente para convencer o Ministério da Saúde a adotar aquele que viria a ser seu símbolo mais famoso. Havia a crença de que a vacinação era um assunto sério demais para ser divulgado com um personagem em animação, conta ele, que foi ajudado por crianças de todo o Brasil, que soterraram o ministério com milhões de cartas com sugestões de nomes para o Zé Gotinha.
“Demos a ideia de fazer um concurso para escolher o nome do personagem, porque aí poderíamos medir se ele tinha carisma ou não. E foi um boom. Foram mais de 11 milhões de cartas, e o próprio ministério ficou meio pasmo“, recorda. “Eu virei uma sarna em cima do ministério depois que criei o boneco. Fiquei lutando por aquilo. E, até hoje, é uma coisa que marcou a minha vida de uma maneira muito grande.”
O criador do Zé Gotinha vai contar a história de como o personagem nasceu e ajudou o Brasil a vencer a poliomielite, que teve o último caso no país em 1989. O livro Zé Gotinha Herói Nacional, editado pelo Ministério da Saúde, será lançado no dia 10 de setembro, na Bienal do Livro do Rio de Janeiro.
AB: Nestes 50 anos de PNI, o Zé Gotinha é um dos protagonistas. O que você acredita que fez ele funcionar tão bem?
Darlan Rosa: Fazendo uma análise depois de todo esse tempo, quando eu criei o personagem, percebi que havia um engajamento muito grande das vacinadoras. A maior parte era mulher. Eu criei um personagem para elas, e fiz um personagem super simples, para que qualquer pessoa pudesse desenhar. Havia uma demanda muito grande de cartazes, de hoje para amanhã, para fazer uma vacinação em uma escola, para fazer uma ação de bloqueio. E, naquela época, não tinha xerox no serviço público. Era tudo feito à mão. Então, eu fui em todos os estados divulgar o personagem, e eu dizia para as vacinadoras, esse é o filho de vocês, que vocês têm que educar e transformar em um grande educador, como vocês também são. E houve esse engajamento. Nesses 37 anos do Zé Gotinha, muitas vezes, o ministério não queria usar, mas os estados e as vacinadoras continuaram usando e pressionando o ministério para que fizesse campanhas usando o Zé Gotinha. Elas têm esse grande mérito de ter colocado o personagem no imaginário brasileiro.
AB A ideia, então, era que ele fosse bem simples de ser desenhado?
Darlan Rosa: As agências de publicidade debochavam que era um personagem que não tinha mãozinha, que não tinha pé. E, naquela época, havia uma predominância de uma estética Disney, com personagens gordinhos, com a mão com luva, toda uma filosofia que, no meu entender, não se encaixava em um personagem para a saúde pública. E vejo que, hoje, grande parte dos personagens do mundo dos games é como o Zé Gotinha, sem mãozinha, sem pé, porque facilita o computador a movimentá-los em cena. Coincidentemente, o Zé Gotinha hoje é totalmente contemporâneo, mais até do que quando foi criado.
AB A ideia foi mal recebida inicialmente pelo ministério. Como foi esse convencimento para que o Zé Gotinha pudesse ser usado? O que virou essa chave?
Darlan Rosa: O ministério tinha muito receio porque uma campanha de vacinação precisava vacinar milhões de crianças em um único dia, o que tem um custo muito grande. E, se você introduzisse um personagem na campanha e ela fracassasse, o prejuízo seria muito grande. Também havia pessoas dentro do ministério que achavam que não se podia tratar vacinas como fantasia, que era uma coisa séria demais para colocar um personagem engraçadinho pulando. O Zé Gotinha foi criado dentro da secretaria em que ficava o PNI e que também tinha um grupo de educadores em saúde. Primeiramente, eu os convenci de que poderíamos criar um projeto educativo a longo prazo. Quando o Zé Gotinha foi criado, a encomenda que eu recebi era só de criar uma logomarca para marcar o compromisso do Brasil de erradicar a pólio. Quando levei a ideia do personagem, me disseram: “Mas nós não te encomendamos isso. Queremos só a logomarca”. Mas meu raciocínio foi o seguinte: se o maior prejuízo da criança com a pólio é a mobilidade, o personagem precisa andar, pular e ser feliz. Essa era a tônica que a gente estava trazendo. Então, demos a ideia de fazer um concurso para escolher o nome do personagem, porque aí poderíamos medir se ele tem carisma ou não. E foi um boom. Foram mais de 11 milhões de cartas. O próprio ministério ficou meio pasmo, e começamos a perceber que o nome Zé Gotinha era recorrente. Mas, mesmo assim, não conseguimos colocar ele na campanha, e foram feitos filmes com ele para a vacinação de rotina. Só que isso teve uma repercussão muito grande, foi muito comentado pela mídia. E, então, em setembro de 1988, finalmente conseguimos a campanha.
AB Então, o Zé Gotinha foi criado em 1986 e só estrelou uma campanha anos depois?
Darlan Rosa: Isso, em 1988. Nesse período, fiz uma história em quadrinho, fiz joguinhos, fiz cartazes. Uma coisa que poucas pessoas sabem e que não chegou a ser veiculado é que o primeiro nome dele era Vax, uma abreviatura de vacinas em inglês que era muito usada. Vou lançar um livro na bienal que resgata essa história: Zé Gotinha Herói Nacional.
ABO Zé Gotinha participou da cerimônia em que o Brasil recebeu o certificado de eliminação da pólio. O que você sentiu naquele dia?
Darlan Rosa: Eu estava nos Estados Unidos naquela época, acho que em 1995, mas tenho um filme dele na cerimônia junto com o presidente Itamar Franco. O boneco foi na solenidade. Imagine o impacto que isso teve na minha vida. Anos antes de fazer esse personagem, tive um programa infantil na TV, em que desenhava personagens para crianças. Eu já fiz personagens para campanhas para dormir, para lavar a mão, para não fumar. Quando veio a ideia de uma logomarca para campanha de pólio, eu vi que era uma oportunidade de ouro. Eu virei uma sarna em cima do ministério depois que criei o boneco. Fiquei lutando por aquilo. E, até hoje, é uma coisa que marcou a minha vida de uma maneira muito grande.
AB: Você trabalhou no Unicef depois do sucesso do Zé Gotinha. Essa experiência brasileira foi exportada? O Zé Gotinha inspirou outros personagens pelo mundo?
Darlan Rosa: Eu fiz o Zé Gotinha em um convênio entre o Ministério da Saúde e o Unicef, trabalhei no ministério e depois fiquei 16 anos colaborando com o Unicef. Eu fiz a campanha que erradicou a pólio em Angola, com um personagem também, que lá era uma estrela. A experiência em Angola foi o seguinte: o país estava em guerra civil, e o vacinador não podia entrar na zona rebelde para vacinar. Então, a ideia foi criar um personagem que trouxesse a criança para ser vacinada. Fiz também nos Estados Unidos uma campanha veiculada nos países do Terceiro Mundo sobre micronutrientes, também com personagem, e acabei fazendo uma trilogia sobre iodo, vitamina A e ferro. E esses livros foram traduzidos em várias línguas.
AB: Você defende que é preciso falar de vacinas sem assustar, mas existe uma avaliação hoje de que falta percepção de risco sobre as doenças que as vacinas controlaram. Como vê esse equilíbrio entre conscientizar do risco e assustar?
Darlan Rosa: Se você tem um personagem que significa proteção e você vai receber ele dentro do seu corpo, você vai receber uma coisa boa. Não tem que ter medo. Eu sou completamente contra o terrorismo nas campanhas. Quando fiz a campanha em Angola, em 1999, Luanda tinha 3 milhões de habitantes e dez vezes mais morando na rua, porque o país estava todo minado. Em um país em que a subnutrição era tal que as pessoas comiam dia sim, dia não, tinha que falar para as pessoas que elas tinham que se vacinar porque tem uma doença chamada pólio, quando elas estavam preocupadas com ataque, com bomba, com subnutrição. Isso nem entrava na cabeça deles. E não tinha TV, rádio e jornal para sustentar essa campanha. Mas, quando cheguei lá, percebi que as pessoas tinham algo como o nosso cordel, uma comunicação em quadros que era poética, e eu surfei nessa onda. O personagem lá, que se chamava Cuia, que era uma estrela de cinco pontas, toda em forma de poesia. Reunimos escoteiros, associações, igrejas e criamos um time de 1 milhão de entregadores de mensagens, porque era oral a comunicação, no meio de uma guerra. E a estrelinha se chamava Cuia porque era uma palavra com entendimento em todos os dialetos, era algo bom, algo doce. Isso tudo é para dizer que não creio no terrorismo. inclusive no ano passado, quando o filho do Bolsonaro colocou uma arma na mão do Zé Gotinha, fiquei possesso, porque era o trabalho de uma vida sendo estragado. Eu acredito na educação e no conhecimento.