ESPECIAL: Eles chegam antes da hora, sem dar tempo para chá de bebê e decoração do quarto. Os pais nem têm chance de abraçá-los antes de irem para a incubadora. Delicados, convivem com agulhas, tubos, sondas, alarmes, fios. Um dia estão bem… no outro, lutando pela sobrevivência. E, do outro lado da redoma, pais com medo e fé só querem a simplicidade de tê-los em seus braços
‘Quando Nina nasceu, eu não chorei. Não a abracei. Não a amamentei. Não a acalmei. Não pude lhe apresentar o mundo. Eu, que sonhei com esse momento, nem sabia o que fazer. Tinha dado à luz um bebê prematuro, que podia não estar respirando direito, e só queria que ela saísse logo dali para ser salva’.
Alívio e medo, felicidade e tristeza, frustração e esperança, fé e desespero, tudo acontece ao mesmo tempo para quem é mãe e pai de UTI neonatal. Se chora, reza e faz promessa, ainda que não seja religioso. E sai outra pessoa. Descobre que a vida pode ser frágil, mas que esses pequeninos se agarram a ela com força extrema. Passa a dar valor a coisas simples como ter seu filho nos braços, na hora e pelo tempo que quiser, do jeito que toda mãe sonha – e não tem ideia do quanto isso pode ser difícil para muitas mulheres.
Cerca de 15 milhões de prematuros nascem por ano no mundo. Segundo a Organização Mundial da Saúde, somos o décimo país com mais partos pré-termo (prematuro) em números absolutos. Em 2016, nasceram vivas 317,6 mil crianças com até 37 semanas de gestação, período que caracteriza a prematuridade, de acordo com o Ministério da Saúde – dados preliminares mostram que houve um ligeiro aumento em 2017, com 318,4 mil partos. Esse crescimento é sentido ao longo das últimas décadas. Em 2006, foram 194,7 mil, o que representava 6,6% dos partos. Em 1996 eram 115,2 mil, ou 3,9%.
“Aumentou muito porque antes eles não sobreviviam. Bebês de 24, 25, 26 semanas morriam. Mas, com o avanço da tecnologia, eles têm condições de viver, e com qualidade”, diz a neonatologista Ana Luisa Rossini, do Hospital Brasil, da Rede D’Or São Luiz (SP). Para se ter ideia, em 1996 apenas 922 prematuros com menos de 500 gramas sobreviveram. Em 2016, 4.015. Já há registros de sobrevivência de nascidos com 229 gramas ou 21 semanas, quando o esperado é que nasçam entre 40 e 42.
No Japão, há sobrevida a partir de 22-23 semanas, nos Estados Unidos e na Europa, 24, e no Brasil em torno de 26-27. De 75% a 85% dos bebês vivem, e sem sequelas, segundo a Sociedade Brasileira de Pediatria. Os que nascem com 1 kg ou mais têm 100% de chances de ficar bem, segundo o Hospital e Maternidade Santa Joana (SP).
Além da tecnologia neonatal, o maior acesso à reprodução assistida, a espera para engravidar e a gestação de múltiplos explicam o crescimento de prematuros. A prematuridade pode ser provocada por problemas maternos (pré-eclâmpsia, diabetes gestacional, descolamento de placenta, encurtamento do colo do útero, estresse, má alimentação, tabagismo), complicações do feto (cardiopatias, malformações, síndromes) e sem causa identificável.
É bom lembrar que bebês de 39-40 semanas também podem parar na UTI. Desconforto respiratório, hipoglicemia e complicações do parto normal (que podem levar à reanimação) são os principais motivos.
Mãe de UTIN
‘Ser pai e mãe de UTI é ver seu filho através de um acrílico. É ter medo de receber uma ligação de madrugada. É se assustar com apitos dos monitores. É comemorar em um dia e desmoronar no outro. É não fazer previsão para a alta. É sorrir mesmo quando vê seu filho furado, entubado, com sonda. É aceitar que você não pode fazer nada a não ser estar ali, em uma rotina de espera’.
Um início de vida assim deixa marcas. Ver bebês morrerem onde deveriam apenas nascer desestabiliza. Mais de 1 milhão de prematuros morrem por ano no mundo. No Brasil, é a principal causa de mortalidade infantil – das 36.350 crianças de até 1 ano que morreram em 2016, 20.303 eram prematuras. A dor da mãe que perde seu bebê também é um pouco sua, neste lugar em que demonstrar alegria pelo seu filho parece contravenção. “A primeira vez que vi um bebê morrer, surtei, não queria mais ir embora”, lembra a supervisora de RH Gesely dos Santos Cypriano, 40 anos, mãe de Isabela, 3 anos, que nasceu com 29 semanas.
Não é à toa que essa vivência mexe com a saúde mental de pais e mães de UTI, segundo pesquisa da ONG britânica Bliss. Das 589 pessoas ouvidas, 23% desenvolveram ansiedade, 16% transtorno de estresse pós-traumático, e 14% depressão pós-parto. “Os pais têm de entender que isso é uma fase e não podem deixar de ter um projeto de vida com a criança, pois essa relação é construída com o convívio”, diz a psicóloga Angelita Wisnieski da Silva, do Hospital Pequeno Príncipe (PR). Trocar fralda na UTI, dar banho, pegar no colo, contar sua história para o bebê ajudam nessa ligação.
Contudo, se as visitas à UTI não estiverem fazendo bem, é preciso se respeitar. “Dar um tempo para assimilar e aceitar que aquele não é o bebê ideal exige uma reelaboração. Cobrança e julgamento atrapalham”, orienta.
Segredos da vida
A experiência renova sua fé nos mistérios da vida. Aquele ser frágil é, na verdade, forte. E milagres existem. “A Juju é um milagre: eu não podia engravidar, ela veio, passou por milhões de coisas, lutou e venceu”, comenta a professora Gisele Siqueira Pacheco, 39, mãe de Júlia, 1 ano e 7 meses, que ficou 58 dias na UTI. Ela poderia ter ficado cega e com problemas neurológicos. No fim, só tem miopia e estrabismo.
“Depois de 28 anos, as crianças ainda me surpreendem. O ser humano é guerreiro. Cada vez mais penso que somos ajudantes nesse complexo de sobrevida”, diz Silmara Possas, coordenadora da UTI Neonatal do Hospital Pequeno Príncipe (PR).
Milagre, fé, coincidência, não importa o nome. Aconteceu também com Carolina, 7 anos, filha da artesã Alexandra Terzis, 40. Ela veio ao mundo com 25 semanas, com 360 g e 27 cm, foi considerada o menor bebê do Brasil em 2011 – chegou a 270 g na UTI. Tinha 10% de chances de sobreviver. Ficou seis meses na UTI e, hoje, ainda precisa de cuidados multidisciplinares, mas enxerga, respira sozinha, vai para a escola, entende tudo, fala algumas palavras e, até o final do ano, deve andar com ajuda de um andador.
Em casos raros, um bebê faz aniversário na UTI. Em geral, a permanência é proporcional ao tempo mínimo que ele deveria ficar na barriga. Alguns hospitais dão alta assim que ele atinge 2 kg e 35 semanas, ou 1,9 kg e 37 semanas. Outros, esperam mais. Há três classificações para prematuros: até 28 semanas são os extremos, até 32 os muito prematuros, até 34 os moderados e até 37 os tardios. Quanto antes saem da barriga, mais problemas podem ter. (Istoé)
Fui internada no dia 20, quando um pré-natal de rotina acusou que Nina tinha uma séria restrição de crescimento intrauterino, um problema que atinge até 15% das gestações. Por causa de uma trombofilia, condição ligada à circulação sanguínea, ela não recebia nutrientes e oxigênio direito. Achei que sairia logo dali, já que a data prevista do parto era só 7 de agosto e eu tinha muito a fazer: finalizar um livro, o enxoval, decorar o quarto, lavar as roupinhas…
Assim, no dia 29, quando os exames pioraram e o obstetra marcou o parto para o fim da tarde, eu não estava preparada. Minha filha ia nascer e eu não tinha enfeite de porta, lembrancinhas, camisola nem foto bonita do barrigão! Então, duas horas antes de ir para o centro cirúrgico, cliquei meu próprio ensaio de grávida. Minha sogra trouxe o enfeite de porta. Minha mãe foi comprar o resto. Nina podia vir. Não ia ser de parto normal, mas isso eu não podia mais controlar.
Às 18h20, com 34 semanas e quatro dias de gestação, um som como o de um gargarejo me fez perguntar: “Nasceu?”. Soube que sim quando ouvi do meu marido: “Que pequenininha”. A vi brevemente e, ainda entorpecida pela preocupação, lhe dei um beijo rápido de boas-vindas.
Ela voltou pouco depois, enrolada, com touca e meias tamanho RN, que ficaram gigantes. Nina tinha 41 centímetros, 1.760 gramas e um ótimo Apgar [nota de vitalidade]: 10. Cabia numa caixa de sapato. Mas respirava sem a ajuda de aparelhos e não tinha nenhum problema. Fiz carinho nas suas bochechas, uma foto e me despedi.
Cheguei ao quarto vazio me sentindo igualmente vazia. O bebê havia dado lugar a uma cicatriz. Pedi ao meu marido para lhe fazer companhia. Tive inveja desse momento. No dia seguinte, ganhei meu kit mãe de UTI – uma chave de armário e instruções de higienização. O bebê que eu encontrei para nosso primeiro “pele a pele” foi outro que pari: tinha um cateter maior que a própria mão, uma sonda até o estômago, oxímetro e eletrodos no peito. Deste dia, tenho fotos. Descobri depois que celular é proibido na UTI, mas como impedir uma mãe, que já não leva seu bebê para casa, de ter uma imagem para olhar antes de dormir? O que mais me doía, principalmente quando tive alta, era pensar que Nina estaria lá, sozinha num mundo hostil: luzes, barulhos, alarmes, sendo furada, sem ninguém para abraçá-la se tivesse um sonho ruim. Tão pequena e desamparada… Chorei muito.
Rotina de UTI
A previsão era que em 15 dias Nina atingiria 2,1 kg para a alta – com sorte, menos tempo. Porém, se os gramas custavam a chegar, os sustos, não. Por isso, passei a ficar no hospital das 6h30 às 19h30, escrevendo o livro entre as mamadas. Uma mãe passa muito tempo alternando-se entre tirar o leite no lactário e oferecer o seio ao bebê na UTI, se ele já tem 34 semanas. Quando a exaustão bate, algumas cochilam nas poltronas da sala de mães. As que têm outros filhos, correm para casa para tentar dar o jantar, mas contam mesmo com a rede de apoio.
Os homens são numerosos nos cinco dias de licença-paternidade (ou um mês de férias) e, depois, engrossam a espera após o trabalho. Muitas vezes, aguardam as trocas de turno de enfermeiras e o fim das mamadas para entrar na UTI. Várias vezes meu marido esperou das 19h às 21h – em algumas, brigou para ver nossa filha antes.
Bebês chegam, outros vão, mães veteranas recebem as que ainda se perguntam “por que comigo?”. De repente, você está lá há três semanas e não lembra como era viver sem esse pesadelo. Por isso, quando a pediatra perguntou o que eu achava de levar Nina no dia seguinte, desmoronei. Chorei como se acordasse do pior sonho de minha vida.
Mas lembra quando falei de não fazer previsões? Nina não ganhou peso e a alta foi adiada. Larguei o avental correndo, guardei a roupinha que levei para a sua saída e, pela primeira vez em 21 dias, saí do hospital para sumir. Chorei e andei sem rumo por duas horas e meia. Uma avalanche tinha acontecido dentro de mim. Só uma mãe de UTI entenderia: a espera silenciosa, o medo da perda, a dor de não ter o bebê o tempo todo, a agonia de somar os gramas e diminuir os dias, o desespero de contar os mililitros de leite que sua filha precisava e que não saíam de seu peito, o pânico de pegar uma gripe e ser proibida de entrar, a desesperança.
Segundo nascimento
Eu já disse que esse mundo de UTI é imprevisível, não é? No dia seguinte ao em que perdi as esperanças, Nina nasceu para o mundo: em 21 de julho, ela recebeu alta. Tinha 22 dias, mas era como se fosse o primeiro. Estávamos nos conhecendo. O começo foi tenso: tive problemas com a amamentação, a vesti tanto que ela teve alergia, evitei as visitas… Ela saiu da incubadora, mas continuava na redoma.
Evidentemente, alguns cuidados são necessários, como não circular em ambientes fechados (shoppings, mercados) e evitar contato muito próximo, sobretudo com crianças. Alguns médicos orientam ficar em casa por 30, 40 dias. Só os bebês mais comprometidos precisam de acompanhamento multidisciplinar (fisioterapia, fonoaudiologia…) e home care.
Dos pediatras da Nina, ouvi bons conselhos: eu precisava me dar alta da UTI. “Tem de apertar o botão reset e começar de novo essa construção do vínculo”, diz a pediatra e neonatologista Vânia Gato Medeiros, da Lumos Cultural (SP). Como? “Mostrando que o mundo não é apito, alarme, luz branca, onde ele fica numa caixinha. Leve o bebê para conhecer o céu, o vento, a árvore, para ouvir outras vozes, coloque em contato pele a pele. Assim, vai suavizando a lembrança de tensão”, completa.
O segundo conselho foi esquecer o rótulo. “A prematuridade foi uma condição de nascimento e ela precisa deixar de existir, porque senão você chega aos 18 anos apresentando seu filho como prematuro. E isso tem um impacto na vida dele, uma condição de insuficiência ou inadequação, que não é bom”, orienta o neonatologista e pediatra Carlos Eduardo Correa (SP).
O terceiro: não achar que minha filha era frágil, já que tinha vencido tantos obstáculos. Nina era forte. E foi para ela a dedicatória no livro sobre a força feminina (Extraordinárias – Mulheres que revolucionaram o Brasil, em coautoria com Duda Porto de Souza).
Demorou um pouco para ela estabelecer vínculo. Mas o amor venceu o medo. Quando fez 1 ano, o tema de sua festa foi Polegarzinha. Era assim que eu queria encerrar essa história: de uma menina que nasceu pequena e delicada, mas superou as adversidades. O resto, é página virada. (IstoÉ)